O Governo Lula e o mercado: dissonâncias cognitivas

Será que o mercado financeiro como um todo está sofrendo de algum problema cognitivo? Parece que sim, pois os agentes econômicos na Faria Lima parecem se surpreender com coisas bastante evidentes há muito tempo. 

Para começar, é preciso dizer o óbvio: o PT ganhou as eleições! 

Pode-se argumentar que a política econômica do PT não foi o fator decisivo nas eleições, mas essa política foi eleita junto com Lula. Parece óbvio – mas não o é para muitos. 

O discurso conciliador de Lula foi o caminho para alcançar o poder, e com enorme sucesso, já que a agenda econômica do PT não precisou ser alterada em nada para atrair os votos do centro. 

Em nenhum momento o candidato Lula expressou compromissos com a agenda defendida pelo mercado. Ao contrário, ficou claro que o governo eleito expandiria gastos e não conviveria bem com um BC independente comandado por alguém indicado por seu adversário político. 

Lula escolheu um Ministro da Fazenda alinhado com sua agenda, com um forte viés de justiça social e menor compromisso com a agenda chamada “liberal”. Mais uma vez, nenhuma novidade.

O compromisso do primeiro governo Lula com o chamado tripé econômico foi apenas transitório. A agenda real era colocar a casa em ordem para então pôr em prática as políticas de expansão da demanda interna. 

A crise de 2009 deu a deixa para isso, e Dilma as colocou em prática com vigor. Para o PT, Dilma errou na dose, mas não na direção. O pós-covid serviu ao atual Presidente da mesma forma. Gasto se tornou vida.

Dispêndios com transferências, previdência, saúde e educação não seriam “gastos”, mas investimentos sociais.  Por ser um partido de base popular, esta visão é a que mais serve para a manutenção da popularidade do governo, pois medidas mais fortes de austeridade fiscal são impopulares. 

Elas se tornam impensáveis no realpolitik do cenário de polarização atual e somente ocorreriam após uma grave crise econômica. Esperar algo diferente de fato denota um sério problema cognitivo.

O Ministro Haddad sempre mostrou uma enorme preocupação com a péssima distribuição de renda de nosso país. Basta ouvi-lo com atenção. Desta forma, esperar uma redução significativa nas políticas de transferência de renda estabelecidas durante o período da covid foi a primeira falha de cognição do mercado. 

O Ministro de fato defende o equilíbrio fiscal, porém ele o pretende através do aumento na arrecadação, ou seja, do aumento da carga tributária e de medidas pontuais de contenção de gastos. Apesar da história econômica mostrar que países emergentes que crescem mais têm carga tributária muito inferior à nossa, a escolha de Lula não foi essa, tampouco da Constituição de 1988. 

O arcabouço fiscal segue a mesma linha. As reformas tributárias em curso terão como “efeito colateral” o aumento da arrecadação e da carga tributária, embora o corpo técnico do Ministério não defenda isso, tampouco o Congresso. Ou seja, teremos uma carga tributária maior à frente, gostemos ou não.

O PT tem pavor de inflação alta. Sabe que ela pode afetar dramaticamente a popularidade do governo. Contudo, acredita que a meta de 3% seja ambiciosa demais e demandaria juros maiores, apesar da experiência internacional mostrar exatamente o oposto. 

Além disso, o Presidente não gosta da ideia de instituições de Estado que possam atuar de forma independente. Contudo, o corpo técnico e toda a diretoria continuam comprometidos com sua missão, longe do embate político. Que continuem, senão veremos uma forte escalada da inflação!

Mesmo com os juros atuais, o fato de o desemprego estar caindo rapidamente para níveis abaixo do que se considera o nível de equilíbrio não serve como motivação para o governo reduzir o gasto público, tampouco para amenizar as críticas ao BC. Políticas anticíclicas não estão no menu. O impulso fiscal de 3% do PIB do primeiro ano do governo nem se coloca neste debate.

O desejo do governo de intervir na gestão da Petrobras, Vale e Eletrobras se alinha com esta estratégia. Como essas empresas possuem uma capacidade enorme de investir, o Estado deveria estar presente lá, na opinião do PT. Alguns confundem isso com fisiologismo, mas é simplesmente a agenda econômica do governo Lula.

Mas tanto o governo como o mercado seguem surpresos com as reações recíprocas! Dólar disparando, juros reais longos de 6%, inflação implícita acima de 5% nos títulos públicos, tudo isso é encarado pelo PT como uma reação política das “elites” do mercado. O medo e a insegurança começam a predominar, pois os desequilíbrios de médio prazo que estão hoje em gestação são preocupantes demais, tanto para o governo como para o mercado.

Que governo e mercado entendam e respeitem suas diferenças de visão econômica, pois cada lado precisa do outro. O mercado aos poucos começa a assimilar as escolhas políticas validadas pelas urnas. E há indícios que o governo esteja percebendo os limites para suas políticas. Mas quem sabe, valeria a pena escrever algo sobre as dissonâncias cognitivas do próprio governo.

Ricardo Gallo é sócio da Ethica Serviços Financeiros.

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