Delfim Netto, o ‘czar da economia’ na ditadura militar e uma das figuras mais influentes da história recente do País em mais de 50 anos de vida pública, morreu hoje em São Paulo, aos 96 anos.
Responsável pela formação de gerações seguidas de economistas, Delfim viveu seu auge nos anos do governo militar, mas manteve relevância depois da redemocratização.
Cativava os interlocutores com sua inteligência e capacidade técnica – e também pela facilidade em criar frases memoráveis e produzir ironias ferinas, muitas vezes tendo a si próprio como alvo.
Primeiro economista a ser Ministro da Fazenda, nomeado pelo General Costa e Silva em 1967, esteve à frente da Fazenda no período conhecido como ‘Milagre Econômico’ – uma plano de crescimento baseado em incentivos para a indústria e para a exportação, ao mesmo tempo em que reprimia os ganhos salariais para controlar a inflação.
Afastado no Governo Geisel, em 1973, retornaria triunfante a Brasília seis anos mais tarde, no Governo Figueiredo, com o apoio do grande empresariado do qual sempre foi próximo. “Senhores, preparem os seus arados e suas máquinas, vamos crescer!” disse no discurso de posse.
Era agosto de 1979, e Delfim assumia como Secretário de Planejamento de Figueiredo.
Na plateia, empresários, grandes produtores rurais e banqueiros festejavam o retorno do ‘pai do Milagre Econômico’ em substituição a Mário Henrique Simonsen, que havia apresentado um impopular plano de contenção do PIB para controlar a inflação.
Com Delfim, a economia voltaria a jogar no ataque.
“Este País só enfrenta a crise crescendo mais!”
Foi aplaudido efusivamente, mas o Milagre já havia perdido seu encanto. Àquela altura, o País estava quebrado, mergulhado na crise profunda causada pelos desequilíbrios criados nos anos anteriores em meio a um cenário externo adverso.
O Milagre deixou como legado a crise da dívida externa, hiperinflação e um dos países mais desiguais do mundo – além do histórico execrável de assassinatos e repressão política, agravada pelo infame Ato Institucional N° 5, de 1968, do qual Delfim foi um dos signatários.
Apesar de criticado na academia por seu dirigismo autoritário nos anos de comando da economia e por sua política de repressão salarial para o controle da inflação, Delfim continuou cativando a admiração de políticos e empresários por sua grande capacidade intelectual – além de ser reconhecido por sua enorme contribuição na formação de gerações de economistas.
“Pode-se discordar de Delfim. Pode-se criticar muitas de suas escolhas na na vida pública. A ditadura foi deplorável,” Marcos Lisboa escreveu no Brazil Journal há seis anos, comemorando os 90 anos de Delfim. “Em vários momentos, critiquei severamente opções de política econômica que ele defendeu com o maneirismo usual. Mas não se pode deixar de ler Delfim.”
“O velho economista conhece o seu ofício,” disse Lisboa. “Em sua longa carreira, quase toda fora da universidade, Delfim permaneceu atento à pesquisa acadêmica e a seus resultados sutis.”
Mas, segundo Lisboa, ainda que sua gestão na Fazenda tivesse alguns legados positivos, “a criatividade que prometia desenvolvimento a partir de meados dos anos 70 não foi bem-sucedida, assim como não foi a sua repetição mais desastrada na última década”.
“Sua tentativa heterodoxa de controle dos desequilíbrios macroeconômicos no começo do governo Figueiredo fracassou e resultou numa das maiores crises da nossa história,” escreveu Lisboa.
Antonio Delfim Netto nasceu em São Paulo em 1° de maio de 1928. Cresceu no Cambuci, bairro central da cidade, neto de imigrantes italianos. Seu avô, Antonio Delfini, era originário da Calábria.
Aos 14 anos, Delfim começou a trabalhar como office boy. Estudou na Escola Técnica de Comércio e na sequência ingressou na Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da USP, onde seria por anos um de seus mais influentes professores.
A partir da cátedra na USP, criou uma nova geração de economistas, os ‘Delfim Boys’ – alunos como Affonso Celso Pastore, Carlos Antonio Rocca, Paulo Yokota, Eduardo Carvalho e Luis Paulo Rosenberg.
Em um depoimento a este site há dois anos, Pastore afirmou que havia se tornado um seguidor do método científico de Karl Popper por causa de Delfim.
“Virei popperiano por causa dele. É a mesma visão do físico,” afirmou Pastore. “O que não passa no teste não é ciência. É metafísica.”
Pastore rememorou que Delfim era sempre um dos primeiros a chegar à faculdade, que ficava na rua Dr. Vila Nova, no centro da cidade.
Por volta das 7h30, estacionava o seu Fusca e seguia para a sala de aula. Em tempos de grande autodidatismo, o método de ensino era colocar os alunos para pesquisar e fazê-los descobrir os estudos de ponta em nas ciências econômicas.
Junto com os alunos, Delfim ia às livrarias no Centro e encomendava os livros estrangeiros de autores publicados pelos jornais científicos recebidos regularmente pela faculdade.
Escolhia os temas de estudo, e todas as quartas-feiras e sextas-feiras havia apresentação dos alunos. No final dos anos 1950, ganhava atenção a pesquisa sobre o desenvolvimento econômico, a partir, por exemplo, do modelo Solow de interpretação das causas para o crescimento de longo prazo.
Para um país ainda rural e pouco industrializado, esse era um tema prioritário.
Hoje o café representa uma fração pouco relevante do comércio internacional brasileiro, mas nos anos 50, a saúde da economia passava ainda pelas boas vendas internacionais dos grãos cultivados nas fazendas de São Paulo e Minas Gerais.
O café gerava mais da metade das exportações. O País, como explicou Delfim em sua tese de livre-docência defendida em 1958, estava em uma cilada. A volatilidade cambial imposta pelas oscilações no preço do café jogava contra outros setores da economia, sobretudo a indústria.
A tese O problema do café no Brasil, publicada como livro em 1959, foi um trabalho seminal para
a interpretação dos altos e baixos da economia brasileira e deu sustentação a políticas públicas que seriam testadas na prática com Delfim no poder.
Em algo relativamente novo para a época – particularmente na academia brasileira –
a tese de Delfim trazia narrativa histórica escorada em modelos econométricos. Um de seus achados foi explicar como a intervenção governamental em defesa dos preços do café retardava o desenvolvimento industrial.
Resumindo suas ideias anos mais tarde em uma apresentação na USP, Delfim disse que as variações dos preços do café “produziam flutuações internas de grande amplitude,” o que trazia “incertezas insuperáveis para as outras atividades domésticas e para as incipientes atividades exportadoras de outros produtos
agrícolas. E, muito mais, sobre a nossa, ainda em gestação, atividade industrial”.
Delfim oferecia um caminho para o Brasil superar o vício em café: uma taxa de câmbio sempre competitiva. Com isso, caiu nas graças dos industriais paulistas. Falava o que eles queriam ouvir.
Delfim foi consultor da Associação Comercial de São Paulo, então a entidade empresarial mais relevante. Em 1959, foi indicado para um cargo no governo do Estado.
Pouco depois, em 1965, já na ditadura, começou sua projeção no governo federal.
Ganhou assento no conselho econômico, ao lado dos ministros do Planejamento, Roberto Campos, e da
Fazenda Octávio Gouvêa de Bulhões. Dois anos depois, quando Costa e Silva tomou posse como Presidente, Delfim assumiu a Fazenda.
Batizado pela imprensa de ‘czar da economia,’ Delfim fez rodar um modelo que favorecia a indústria. Calibrou as taxas de câmbio e o crédito público para favorecer as exportações de produtos manufaturados. Em sua própria avaliação, “resolveu” dessa maneira o problema do café.
Em Brasília, era uma ‘máquina de poder.’ Com sua rede de influência, homens de confiança em cargos estratégicos na alta burocracia e ligações estreitas com o empresariado, foi o vértice de confluência dos interesses dos militares e do setor privado: o regime autoritário dependia das elevadas taxas de crescimento e da colaboração dos donos do dinheiro para se legitimar no poder.
Nos três anos iniciais da ditadura, Campos e Bulhões promoveram reformas e ajustes – alguns
recessivos, mas necessários para controlar a inflação. As medidas impopulares contribuíram para o crescimento futuro, mas provocaram uma contratação momentânea na atividade.
Com Delfim, a prioridade foi o crescimento. Veio o ‘Milagre Econômico,’ com o PIB avançando a taxas superiores a 10% ao ano.
Para Delfim, não havia nada de milagroso. “Milagre é um acontecimento sem causa,” repetia com frequência.
Tinha certa razão. O crescimento acelerado não era milagroso, e algumas de suas causas estruturais
não tinham nada a ver com sua gestão. A transição populacional do campo para a cidade contribuía para o aumento da produtividade.
As reformas de Campos e Bulhões também
ajudaram. A conjuntura externa era favorável, com alta liquidez internacional e facilidade para obtenção de crédito. Isso acabou sendo uma bênção e, mais tarde, a ruína do modelo, sufocado pelo endividamento externo.
Delfim surfou nesses fatores e potencializou o crescimento industrial, usando como motor a
máquina pública.
Havia focos de insatisfação popular, tanto pelo autoritarismo político como por causa da inflação elevada e do arrocho salarial. A resposta do governo foi apertar a repressão.
Em 13 de dezembro de 1968, foi decretado o AI 5, com a assinatura do Presidente e de todos os ministros, Delfim incluso. O ato fechou o Congresso e as assembleias legislativas estaduais, baniu opositores, instituiu a censura e respaldou a tortura em nome da “segurança nacional.”
Anos depois, após a redemocratização, Delfim foi questionado várias vezes se se arrependia de ter assinado o AI-5. Sempre respondeu com um enfático “Não.” A ameaça do terrorismo de esquerda teria justificado o ato, em sua visão.
No Milagre, os preços subiam, o povo reclamava, mas as greves eram reprimidas com a força policial. O Banco Central, recém-criado, com Delfim nunca teve autonomia para ser de fato uma autoridade monetária.
Ficaram famosas as trapaças para mascarar a inflação. O preço do tomate disparava? O Governo dava um jeito de arrumar carregamentos adicionais para inundar os mercados do Rio de Janeiro e derrubar os preços.
Esse era apenas o mais folclórico dos expedientes.
Outros eram os controles de tarifas, as intervenções cambiais e o arrocho salarial. Assim a inflação, apesar de elevada e constantemente ao redor de 20% ao ano, não explodia. Mas, de maneira não muito diferente do que ocorreu na Argentina recentemente, os desequilíbrios foram se acumulado até
transbordarem, nos anos 80, nas crises da dívida externa e da hiperinflação.
“Apesar de todo seu calibre intelectual, Delfim nunca superou o que se pode chamar de ‘fetichismo da indústria’ — a ideia de que a indústria tem um lugar especial na vida econômica dos países e que, como tal, tem que ser protegida,” escreveu Samuel Pessôa em artigo também publicado pelo Brazil Journal por ocasião dos 90 anos de Delfim.
“Delfim errou e acertou. Foi inovador bem-sucedido e vítima dos excessos dos keynesianos na compreensão do fenômeno do desenvolvimento,” disse Pessôa.
Pastore, no depoimento sobre Delfim ao Brazil Journal, disse que as divergências sobre o comando da economia no final dos anos 60 fizeram com ele se afastasse do antigo professor. Só voltariam a se reencontrar no final do Governo Figueiredo, quando Pastore assumiu a presidência do Banco Central. Trabalharam no plano de ajustes e renegociação da dívida externa.
“Respeito muito o Delfim, apesar de ter cometido muitos erros de política econômica,” disse Pastore. “Mas só erra quem faz.”
Delfim soube se reinventar no Brasil democrático. Teve grande influência na Constituinte de 1987, trabalhando nos capítulos econômicos ao lado de José Serra, Roberto Campos e César Maia.
No Governo Fernando Henrique Cardoso, deu apoio ao Real, mas ficou à margem das decisões – e era um crítico inclemente e barulhento do câmbio fixo na primeira fase do plano de estabilização. Continuava defendendo o protecionismo ao empresariado.
A disputa intelectual tinha, até certo ponto, raízes no passado. Entre os ‘pais do Real’ estavam alguns dos principais críticos de sua atuação nos anos da ditadura.
Com Lula, Delfim voltou a ser ouvido pelo centro do poder político.
Era um conselheiro frequente do Presidente em seu primeiro mandato e também de seus colaboradores diretos, como Antonio Palocci, Aloizio Mercadante e até mesmo Dilma Rousseff, que foi presa política quando Delfim dava as cartas no regime.
Michel Temer, assim que assumiu a Presidência após o impeachment de Dilma Rousseff, também recorreu aos conselhos de Delfim. Foi sua última participação indireta na formulação da política econômica.
Em 2021, já com 93 anos e em uma de suas últimas manifestações públicas, disse em entrevistas que apoiaria Lula em vez de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022.
Delfim estava internado no Hospital Israelita Albert Einstein desde o dia 5 de agosto. Deixa uma filha e um neto.
O velório e o enterro serão restritos aos familiares.
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