Os incêndios dantescos de 2020 devastaram um quarto da vegetação do Pantanal e dizimaram 17 milhões de animais silvestres.
Os incêndios deste ano, que já fizeram arder mais de 10% do território da região, poderão ser ainda mais graves. A temporada de chuvas só se inicia em novembro.
Até pouco tempo atrás, episódios como esses eram raros no Pantanal – a maior planície inundável do planeta. O solo úmido foi historicamente uma barreira natural à propagação de focos de incêndio.
Nos últimos anos a coisa mudou de figura.
Incêndios de grandes proporções, como os que estão assolando as cidades do interior de São Paulo nos últimos dias, estão se tornando parte da paisagem do Pantanal, uma das regiões de maior biodiversidade do País. É uma consequência da combinação explosiva de umidade baixíssima e calor extremo.
O Pantanal está secando – e qualquer fogueira acidental pode se espalhar rapidamente e se transformar em um incêndio de proporções incontroláveis.
As inundações características da região, que sempre contribuíram para a riqueza de sua biodiversidade, estão minguando. Uma análise do projeto MapBiomas mostrou que as áreas alagadas diminuíram drasticamente nos últimos 40 anos.
Em 1985, as áreas alagadas ocupavam 7 milhões de hectares (70.000 km²), uma área equivalente a todo o Estado do Rio de Janeiro mais metade do Espírito Santo. Em 2023, o total já havia caído pela metade.
Os números mostram que o Pantanal foi o bioma brasileiro que mais secou nos últimos 40 anos. No ano passado, a superfície de água – rios, represas e lagos – ficou 61% abaixo de sua média histórica.
Entram no cálculo as áreas onde havia água por pelo menos seis meses do ano. Em 2023, a superfície hídrica ficou em 382 mil hectares (3.820 km²).
Recentemente, o último ano em que houve uma grande cheia foi em 2018. Ainda assim, a extensão de terras alagadas foi 22% menor do que em 1988, o ano dos maiores alagamentos da série histórica iniciada em 1985.
O Pantanal é um paraíso natural incrustado na Bacia do Alto Paraguai, com a maior parte de sua área no Mato Grosso do Sul e no Mato Grosso. Ocupa 150 mil km² do território brasileiro – quase 2% do total – e outros 45 mil km² dos vizinhos Paraguai e Bolívia.
(É uma área pouco menor do que a do Estado de São Paulo, com seus 248 mil km².)
O território extremamente plano tem vastas áreas alagadas no período de chuvas, quando aumenta o fluxo de água vindo das nascentes no planalto. O Paraguai e seus afluentes transbordam e se transformam em um grande pântano.
Mas agora, a combinação de queda na umidade e calor extremo tem sido “a receita para o inferno,” disse Teresa Bracher, uma ativista pela proteção da natureza local e dona de fazendas na região há mais de uma década. “É um bioma que está entrando em colapso.”
“Estamos vendo um ciclo de secas desde 2019 que se intensificou em 2023,” afirmou Teresa. “As secas estão mais prolongadas. O Pantanal está enchendo menos e por menos tempo. Sem a inundação, ele vai se desertificando.”
Um triste sinal anedótico é a perceptível diminuição do número de pássaros em algumas áreas. O lugar “está ficando silencioso,” disse Teresa.
O empresário Mário Haberfeld, um ex-piloto de automobilismo e criador do Onçafari, deu início a seu projeto de conservação da biodiversidade em 2011, quando os incêndios não eram uma ameaça como agora.
“Ninguém falava de fogo, mas virou uma preocupação constante,” disse.
O NOVO NORMAL
No ambiente de baixíssima umidade e temperaturas elevadas deste inverno, os ventos secos vindos do norte espalham rapidamente os focos de fogo. Sem uma ação imediata, as chamas se tornam incontroláveis.
“Esse parece ser o ‘novo normal’, e quando o incêndio se espalha só as chuvas conseguem apagar,” disse Teresa, que mal havia começado a observar a recuperação da terra calcinada há quatro anos e agora já enfrenta uma devastação ainda mais extensa em suas terras, parte delas usada para conservação e parte para a pecuária.
‘Novo normal’ é uma expressão repetida por todos os empresários da região.
Diante do maior grau de incerteza nos ciclos do clima e da tendência de redução nos alagamentos observada nos últimos anos, a palavra de ordem é ‘adaptação.’
“É um novo normal e isso é um fato,” disse Alexandre Bossi, o presidente do Instituto SOS Pantanal, que vem liderando investimentos na prevenção e combate a incêndios, como a criação das Brigadas Pantaneiras.
A inspiração tem sido a de países que sofrem há mais tempo com incêndios florestais, como EUA, Canadá, Portugal, Grécia e Austrália.
Houve a formação de brigadas e o investimento em equipamentos de vigilância e combate ao fogo, além do monitoramento via satélite e a construção de torres de observação para detecção dos focos de incêndio.
Outra iniciativa em estudo é o uso de retardantes químicos no combate ao fogo, em vez de apenas água. São substâncias que inibem a ignição e diminuem a velocidade de propagação do fogo. Os drones podem auxiliar no futuro.
Ao contrário da desarticulação vista na tragédia ambiental ocorrida há quatro anos, agora existe uma maior mobilização das forças públicas em conjunto com as ações dos ambientalistas, fazendeiros e empresários do ecoturismo.
Mas é uma área extensa, de difícil locomoção, o que dificulta agir prontamente – e, nas condições atuais, é estreita a janela de tempo para impedir que uma faísca evolua para um incêndio inclemente.
A mobilização de combate avançou, mas falta coordenação para as ações, dizem os empresários ouvidos pelo Brazil Journal.
Uma das maiores queixas diz respeito à falta de um acordo diplomático com a Bolívia.
Os aviões e helicópteros brasileiros de combate ao incêndio não podem hoje invadir o espaço aéreo boliviano – e o problema é que muitos focos estão se iniciando no país vizinho, que pouco tem feito para combater os incêndios.
Em 23 de julho, um fogo iniciado em uma reserva boliviana acabou passando para o lado brasileiro e ganhou grandes proporções, destruindo o que encontrou pela frente na região de fronteira.
Há uma grande reserva ambiental (30 mil km²) na parte boliviana, mas apenas uma dezena de homens monitorando a região. Em outras áreas há o incentivo por parte do governo para a exploração agrícola – e as queimadas são usadas para ‘limpar’ o terreno.
Estão sendo feitos esforços diplomáticos para que se crie um protocolo conjunto de enfrentamento dos incêndios da região de fronteira – de modo similar ao existente entre Portugal e Espanha, em que um país pode avançar até 25 quilômetros sobre o outro para enfrentar as chamas.
“Queremos também ajudar a Bolívia a usar o instrumento de mercado, que é a venda de créditos de carbono, para proteger suas reservas,” disse Ângelo Rabelo, o fundador e presidente do Instituto Homem Pantaneiro, que atua no combate à queimadas e na criação de corredores de proteção ambiental.
Um projeto do instituto levantou recursos comercializando os créditos no mercado voluntário de carbono. Trata-se de uma área de conservação de 150 mil campos de futebol da Serra do Amolar, no município de Corumbá, no Mato Grosso do Sul. É um território equivalente a 7% do Pantanal brasileiro.
Projetos como esse, ao lado das reservas privadas, estão contribuindo para impedir que a devastação predatória avance – mas isso não impede que a região sofra as consequências das transformações causadas nas áreas vizinhas, como o impacto do agronegócio e do desmatamento ilegal nas nascentes.
“Teremos que nos adaptar – lutar contra o fogo, furar poços e construir açudes para que os animais tenham água,” disse Roberto Klabin, dono da Estância Caiman.
“ARCAS DE NOÉ”
Roberto mantém uma relação de décadas com o Pantanal. Sua fazenda, hoje dedicada ao turismo ecológico e sede de projetos de conservação da fauna local, foi parte de uma herança de família.
“Estamos tentando criar ‘arcas de Noé’ – aumentar a quantidade de animais e nos adaptar a esse novo normal,” afirmou Roberto. “É uma fazenda de produção da natureza.”
A batalha emergencial tem sido tratar dos animais feridos e distribuir alimentos para que eles tenham o que comer.
O fogo queimou 80% da área de vegetação da Caiman, onde estão projetos de conservação como Onçafari, Instituto Tamanduá e Instituto Arara-Azul.
“Nem as onças estão conseguindo escapar,” disse Mario Haberfeld. “Infelizmente encontramos carbonizada, sem vida, uma onça que vimos nascer há 11 anos.”
Os solos de onde brotava água agora expelem fumaça no Pantanal – e o calor subterrâneo irradia focos de calor e causa novos incêndios.
A secura é evidente no volume dos rios. O fluxo no Rio Paraguai tem sido um dos menores já registrados – em média, 4 metros abaixo de suas médias históricas para o período.
O silver lining dessa crise tremenda tem sido o aprendizado de como lidar com a nova ameaça do fogo para o ecossistema pantaneiro e o trabalho conjunto de organizações não-governamentais, empresários e o setor público.
“Não podemos chorar, precisamos agir e trazer soluções,” disse Bossi, da SOS Pantanal. “As coisas estão acontecendo.”
“É bem triste o que estávamos vendo, mas o Pantanal vai sobreviver,” disse Haberfeld. “Precisamos manter uma atitude positiva.”
Na visão de Roberto Klabin, o que vem pela frente é uma “era de incertezas.”
“Assim como estamos vivenciando essa seca catastrófica, provavelmente poderemos em breve vivenciar cheias catastróficas também. É todo um processo de desequilíbrio – e precisamos entender que isso é o novo normal.”
PARA AJUDAR O PANTANAL A RESPIRAR
O posto O Pantanal está morrendo. O que é possível fazer? apareceu primeiro em Brazil Journal.