A Vale foi privatizada. 27 anos depois, a coisa ainda está na Justiça

Quando a então Companhia Vale do Rio Doce foi privatizada, em 1997, os opositores da venda da estatal ajuizaram 69 ações populares questionando o processo e pedindo a reversão do leilão.

De lá para cá, a vida seguiu: a Vale mudou de nome e passou a ser uma empresa altamente rentável, com seu valor de mercado pulando de R$ 3,3 bilhões para mais de R$ 260 bilhões.

Mas só agora, 27 anos depois, é que a novela judicial está finalmente chegando ao fim — uma (rara) boa notícia para a segurança jurídica do País, mas também a ilustração mais dramática da morosidade enlouquecedora do Poder Judiciário.

No final de agosto, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu colocar fim a todos os processos, determinando o óbvio: a privatização não tem mais como ser revertida.

As ações populares foram ajuizadas em diferentes regiões do Brasil e por uma miríade de agentes: de políticos de esquerda a funcionários da Vale, de pessoas ligadas ao sindicato a advogados independentes. 

O STJ definiu, no entanto, que todas deveriam ser julgadas por apenas um juiz, já que tratavam do mesmo assunto.  

Na primeira instância, a 4ª Vara de Belém do Pará, a decisão foi rápida. Todas as ações foram extintas com a aplicação da chamada ‘teoria do fato consumado’. 

Essa teoria jurídica é usada quando a reversão de um processo é quase impossível, uma vez que é algo que já se tornou concreto e produziu efeitos, tornando qualquer alteração prejudicial à sociedade. (Na privatização das empresas de telecom, o STJ julgou as ações populares aplicando essa mesma teoria).

Na segunda instância, no entanto, tudo mudou. 

O TRF da 1º Região anulou a sentença em 67 ações, mas manteve a decisão de primeira instância para dois casos. (O motivo dos julgamentos distintos? Ninguém entendeu.)

Nas 67 ações cuja decisão foi anulada, o TRF da 1º Região determinou que seria feita uma perícia para analisar se houve ou não uma subavaliação da Vale no processo de privatização — o que poderia gerar consequências para o consórcio responsável pelo valuation, composto pelo Rothschild, JP Morgan, Merrill Lynch, KPMG, Engevix e Bradesco. 

“Neste momento, houve uma discussão na Vale para tentar um ‘tiro’ que acabasse de vez com o processo,” Vicente Coelho Araújo, o sócio do Pinheiro Neto que defende o consórcio, disse ao Brazil Journal

A Vale é representada pelo Siqueira Castro Advogados.

“A Vale ajuizou uma reclamação constitucional no STJ, na qual entramos como assistentes, dizendo que quando foi julgado o ‘conflito de competência’ lá atrás foi definido que todas as ações deveriam ter os mesmos resultados. Ou seja, não fazia sentido uma ser julgada de uma forma e outra de maneira diferente.”

Os advogados argumentaram ainda que uma das duas ações sobre a qual o TRF da 1ª Região havia confirmado a decisão da primeira instância já havia transitado em julgado, uma vez que o autor — o advogado Mario Davi Prado — não entrou com recurso.

“Nossa tese era que como todas as ações deveriam ser julgadas em conjunto e uma delas já tinha transitado em julgado, para todas as outras deveria ser aplicada a mesma decisão,” disse Vicente. 

Num julgamento que durou mais de um ano, quatro ministros da Primeira Turma do STJ votaram a favor de aceitar a reclamação, quatro votaram contra, e um voto ficou no meio do caminho. O Ministro José Delgado votou para se aplicar a mesma decisão, mas apenas para as 27 ações que tinham sido inicialmente objeto do ‘conflito de competência’ — o que acabou sendo a decisão final.  

(Das 69 ações, 27 foram ajuizadas em 1997, quando houve a decisão do ‘conflito de competência’, e o restante no ano seguinte, ficando de fora da decisão inicial). 

Na sequência, a Vale entrou com um recurso no STF, que também não foi acatado. 

Ao final desse vai e vem, já era 2018 — 21 anos depois da privatização. 

Neste momento, o julgamento das 68 ações que ainda não haviam transitado em julgado retomou seu curso normal, e a Vale, União e o consórcio avaliador entraram com embargos de declaração no TRF da 1ª Região — que, mais uma vez, não foram acatados. 

A próxima tentativa foi entrar com um recurso especial no STJ.

“Tivemos que entrar com recursos para cada um dos 68 processos, correndo o risco de ter juízes diferentes proferindo decisões diferentes,” disse Vicente. “Foi quando o Ministro Mauro Campbell viu o tamanho do problema e tentou organizar a bagunça.”

Campbell reuniu todas as ações em seu gabinete e — usando de um instituto processual novo, chamado incidente de assunção de competência (IAC) — conseguiu julgar todos os processos conjuntamente. 

O julgamento foi adiado por duas vezes, mas acabou acontecendo em agosto, com a Segunda Turma do STJ finalmente colocando fim à história, e definindo — por unanimidade — que como houve trânsito em julgado de uma das ações a decisão precisava ser aplicada para todas as outras. 

Alguns dos autores das ações ainda entraram com embargos de declaração dessa decisão — incluindo Mauro Davi Prado — mas a chance de uma mudança agora é baixa, já que os embargos serão julgados pelos mesmos Ministros que proferiram a decisão. 

Vicente diz que o desfecho é positivo para o País, pois representa segurança jurídica.  

Mas que a Justiça brasileira poderia ser infinitamente mais célere, isso até as pedras de Carajás sabem.

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