Em Lápis-Lázuli, W. B. Yeats ensina que os personagens mais trágicos de Shakespeare – Cordélia e Ofélia, o príncipe Hamlet e o rei Lear – são todos criaturas alegres (“gay”, que nos anos 1930, quando o poema foi publicado, não tinha a ver com orientação sexual).
Pode ser difícil entender o que o poeta irlandês quis dizer com isso. Para ficar só nos personagens femininos: Cordélia é rejeitada pelo pai, Lear, que entrega seu reino às outras duas filhas; Ofélia enlouquece depois que seu pai é assassinado por Hamlet. Onde elas conseguiriam encontrar essa alegria que, nas palavras de Yeats, “transcende todo o terror”?
Dame Judi Dench teve o privilégio de conhecer essa alegria. É o sentimento que transborda de Shakespeare: The man who pays the rent (Penguin; 400 páginas; sem edição no Brasil), uma deliciosa coleção de depoimentos da atriz sobre as personagens de Shakespeare a que ela deu vida em mais de 60 anos de carreira.
Ofélia está lá: foi a primeira atuação profissional de Judi Dench, em 1957, no teatro Old Vic, em Londres. As críticas foram desfavoráveis, e a atriz, hoje com 89 anos, reconhece que lhe faltou sutileza na interpretação.
Cordélia aparece meio de raspão. Judi foi a atriz substituta em uma montagem de Rei Lear. Mas sua irmã Regan aparece no livro: a atriz mostra que ela é um personagem completo, e não a vilã genérica que se imagina.
O livro nasceu de uma série de entrevistas de Judi com o ator Brendan O’Hea – os dois se conheceram em 1995 quando atuaram juntos no musical A Little Night Music. Na introdução, o entrevistador confessa que a intenção inicial não era fazer um livro, mas coletar depoimentos para os arquivos do Globe, o teatro especializado na encenação de Shakespeare.
Impressionado com a memória assombrosa de Judi (ela recita de cor falas de peças que não encena há cinco ou seis décadas) e encantado com seu entendimento íntimo da obra de Shakespeare, O’Hea propôs que a conversa fosse publicada. O resultado é um livro iluminador para quem já conhece Shakespeare e útil para o neófito na obra do bardo.
Judi Dench é avessa a tudo que possa “complicar demais” o trabalho no palco. Ela vê com desconfiança a prática de reunir o elenco antes dos ensaios para discutir a concepção da montagem e dos personagens. Prefere se amparar só nas palavras de Shakespeare. “Somos guardiões da linguagem,” diz.
Essa compreensão intuitiva confere ao livro uma leveza que não se encontrará em estudos acadêmicos. Mas não se deve confundir leveza com superficialidade: a atriz tem um entendimento muito acurado da forma como a linguagem de Shakespeare constrói os mais diversos personagens, de Lady Macbeth a Julieta.
O livro traz um capítulo para cada uma das vinte peças discutidas. Há divertidas histórias de palco e bastidor. Judi conta da noite em que, durante a cena do baile em Romeu e Julieta – na montagem do italiano Franco Zeffirelli, em 1960 – ela se enroscou no próprio vestido e desabou no chão. Tomou um tombo mais grave em 1992, quando entrava em cena como Volumnia, mãe do personagem-título de Coriolano (vivido por Kenneth Branagh) – e teve de fazer o resto da peça amparada em uma bengala.
Os personagens centrais do livro são as mulheres criadas pelo bardo. Judi demonstra carinho por quase todas elas (Pórcia, de O Mercador de Veneza, é uma exceção). Diz que não existe papel pequeno: já foi Titânia, a rainha das fadas de Sonho de uma Noite de Verão, em três montagens – todas de Peter Hall, o diretor que lhe deu as lições definitivas sobre o ritmo do verso shakespeariano – mas também adorou fazer, quando jovem, a Primeira Fada, personagem que nem mereceu um nome próprio.
O título do livro refere-se ao modo como Judi e seu marido Michael Williams (que morreu de câncer em 2001, aos 65 anos) chamavam o bardo quando ambos trabalhavam na Royal Shakespeare Company: Shakespeare era quem pagava o aluguel do casal. Mas o valor de sua obra obviamente não se limita aos bens materiais.
“Shakespeare é uma linguagem internacional, um farol da humanidade e uma ponte entre culturas,” diz Judi Dench. “Tudo o que você já sentiu ou ainda vai sentir está nas suas peças.”
Talvez seja esta a alegria de que falava Yeats: o sentimento às vezes cômico, às vezes trágico, de pertencer à humanidade.
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