‘3 Obás de Xangô’ mostra Jorge Amado, Caymmi e Carybé como porta-vozes dos terreiros

No candomblé, o obá é como um ministro, aquela pessoa encarregada de criar as pontes entre o terreiro e a sociedade. E este foi o título dado por Mãe Senhora, do Ilê Axé Opô Afonjá, a três ícones da cultura brasileira: o escritor Jorge Amado (1912-2001), o compositor Dorival Caymmi (1914-2008) e o artista plástico Carybé (1911-1997).

Através das suas obras, eles transmitiram ao País e ao mundo um imaginário da cultura baiana capaz de simbolizar um povo e resistir ao tempo.

A premissa óbvia do documentário 3 Obás de Xangô é a forte amizade destas celebridades ao longo de décadas. O cineasta Sérgio Machado, entretanto, aborda essa relação como extensão da religiosidade de cada um e a convivência nos terreiros de Salvador. 

“Essa Bahia mítica foi criada pelas mães-de-santo e elas chamaram esses homens que tinham lugar de fala para passar adiante as suas ideias,” disse Machado. O filme acaba de vencer o troféu de melhor documentário no Festival do Rio e o prêmio do público da Mostra Internacional de São Paulo.

3 Obás de Xangô estreia nos cinemas em abril, e até lá percorre o circuito de festivais internacionais. Elementos para agradar ao público do Brasil e do exterior não faltam, principalmente porque, na tela, a Bahia mágica e festiva aparece atrelada a recortes biográficos de três de seus filhos mais ilustres.

Cada um relata como explorou em seus trabalhos o cotidiano de um povo íntimo das crenças africanas.

“Não sou obá de Xangô por acaso, desde sempre me bati contra qualquer violência,” reconhece Amado. O escritor comenta que aos 13 anos fugiu do internato e “começou sua universidade” no meio do povo, das prostitutas e dos vagabundos, personagens recorrentes de seus livros. “Uma vez, um crítico, querendo me depreciar, publicou que eu era o escritor das putas e vagabundos. Nunca me senti tão elogiado,” conta.

Dorival Caymmi afirma que foi só olhar o seu entorno para encontrar inspiração. “Eu vi a vida dos homens que me cercavam e transferi para música e letra,” declara o compositor de clássicos como O Bem do Mar, Vatapá e O Vento. Definido por Amado como o maior baiano dos três, Hector Julio Páride Bernabó, o Carybé, é argentino e se fixou em Salvador em 1950, encantado com os costumes locais e os novos laços. “Vi que sem a amizade não vale a pena viver,” observa o romancista de Gabriela, Cravo e Canela e Tieta do Agreste.  

Machado, um soteropolitano de 55 anos, não conheceu pessoalmente Caymmi e Carybé, mas tem Amado como um padrinho profissional. Aos 22 anos, na faculdade de cinema, dirigiu o curta-metragem Troca de Cabeças, que contava no elenco com Grande Otelo (1915-1993), Léa Garcia (1933-2023) e Mário Gusmão (1928-1996). O romancista viu, pediu uma cópia do filme e mandou para o cineasta Walter Salles com um bilhete que dizia, “esse rapaz tem algum valor, dê uma oportunidade a ele.”

A carreira de Machado deslanchou como assistente de direção de Salles em Central do Brasil (1998) e Abril Despedaçado (2002) e, para elaborar o primeiro longa de ficção, Cidade Baixa (2005), pensou que recorrendo aos três obás de Xangô encontraria o impulso criativo. 

“Eu me tranquei em uma casa em Itaparica e, sem parar, lia Jorge Amado, ouvia Caymmi e fiz um roteiro de imagens com colagens de Carybé,” revela. “O cineasta Eduardo Coutinho, outro dos meus mentores, achou aquilo absurdo e falou: “trata de esquecer desses caras e faça um filme com a Bahia que existe na sua cabeça.”

Cidade Baixa, com Wagner Moura, Lázaro Ramos e Alice Braga, foi premiado em Cannes e, na sequência, Machado dirigiu Quincas Berro D’Água (2010), Tudo o que Aprendemos Juntos (2015) e O Rio do Desejo (2022), entre outros. Com esta bagagem, ele viu que podia dar início a seu projeto mais pessoal: 3 Obás de Xangô começou a ser gestado há dois anos.

Só que, além de Amado, Caymmi e Carybé, o documentário existe por causa de uma outra pessoa, sua mãe, a professora e especialista em estudos africanos Ieda Machado, que morreu de câncer em 2002, aos 60 anos.

No fim da vida, Ieda andava preocupada com a intolerância religiosa ao candomblé, principalmente entre os evangélicos. “Minha mãe era comunista, macumbeira, feminista e tinha uma energia inesgotável para combater injustiças,” lembra o filho.

Machado cresceu entre frequentadores dos terreiros na sala de casa, e Ieda deu aulas de francês para Mãe Stella de Oxóssi (1925-2018). “Quando vi, fazia dez anos que eu não ia a uma festa de candomblé e veio a vontade de me reconectar com minha mãe.”

O cineasta estabelece um ponto comum que atravessa sua obra. Seus filmes trazem uma personalidade feminina no centro da trama e homens que gravitam em torno dela. Em 3 Obás de Xangô, não é diferente. “Com mulher do candomblé ninguém mexe,” justifica.

Apesar de homenagear Amado, Caymmi e Carybé, Machado reconhece que o filme é de todas as mães-de-santo – e da sua.

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