OPINIÃO. Gastos eleitorais e desestruturação fiscal em governos recentes

Nos sistemas democráticos, os políticos têm incentivos para expandir os gastos e manipular a taxa de câmbio para gerar uma sensação de bem-estar nos eleitores às vésperas das eleições.

Depois vem a ressaca, com o crescimento da dívida pública e o impacto inflacionário da correção do câmbio.

Democracias maduras desenvolveram instituições para coibir este comportamento oportunista, como a instituição de banco central independente e regras fiscais e de transparência.

O Brasil, a despeito de melhorias institucionais das últimas décadas, ainda deixa bastante espaço para esse tipo de manipulação, como analisamos neste texto ao calcular os gastos com propósito eleitoral e  manipulação da taxa de câmbio desde o primeiro mandato de Dilma Rousseff.

Em especial, mostramos que Dilma e Bolsonaro, ao enfrentarem duras campanhas à reeleição, lançaram mão desses expedientes – Dilma, aliás, com valores bastante superiores aos de Bolsonaro.

Uma versão mais detalhada de nossas descobertas está no artigo “Gastos Públicos nas Tentativas de Reeleição de 2014 e 2022: rumo a uma crise econômica com forte ajuste fiscal em 2027?”, publicado no blog do Ibre/FGV e que analisa a expansão dos gastos públicos durante as tentativas de reeleição nos governos Dilma 1 e Bolsonaro, assim como documenta o legado fiscal de cada um dos governos desde o Dilma 1.

Dilma 1 e Bolsonaro participaram de eleições caracterizadas por disputas acirradas: em 2014, Dilma se reelegeu com 51,6% dos votos válidos; em 2022, Lula venceu Bolsonaro com 50,9% dos votos válidos.

Ao calcular os gastos relacionados à tentativa de reeleição, procuramos levar em conta todos os mecanismos fiscais utilizados em práticas populistas que conseguimos contabilizar, a exemplo do uso de estatais para aumentar a popularidade do governo.

Foram igualmente incluídas duas práticas contábeis que, por vezes, são empregadas para mascarar a situação fiscal: a postergação do pagamento de despesas por meio de restos a pagar e o adiamento do pagamento de precatórios. Juntos, esses elementos são denominados “gastos encobertos”.

Além destes, consideramos também dois gastos já direta ou indiretamente contabilizados pelo próprio governo federal para aferir sua situação fiscal.

O primeiro é o gasto direto, que envolve os desembolsos primários da União registrados no Resultado do Tesouro Nacional (RTN).

O segundo é o gasto indireto, que é registrado no Orçamento de Subsídios da União (OSU), disponibilizado pelo Ministério do Planejamento. É importante ressaltar que o impacto fiscal das intervenções nas estatais está refletido nos benefícios financeiros e creditícios incluídos no OSU.

Os gastos encobertos durante o governo de Dilma 1 representam 1,7% do PIB, enquanto sob a administração de Bolsonaro, esse valor corresponde a 0,9% do PIB.

Nossa metodologia compara o total de despesas nos dois últimos anos de cada governo com o total no início do mandato (os dois primeiros anos de Dilma e o primeiro ano de Bolsonaro, para evitar usar o segundo ano de Bolsonaro, afetado pela pandemia). Dilma 1 aumentou as despesas “visíveis” em 1,4% do PIB, enquanto Bolsonaro reduziu-as em 0,7% do PIB.

Se somarmos a variação das despesas visíveis aos gastos encobertos, chegamos a um total de 3,1% do PIB para Dilma e 0,2% do PIB para Bolsonaro.

Ou seja, Dilma 1 gastou 2,9% do PIB a mais em sua busca pela reeleição do que Bolsonaro.

Para avaliar a robustez deste resultado, ampliamos o conceito de gastos eleitorais considerando, por exemplo, os subsídios aos combustíveis no mandato de Dilma, a desoneração de ICMS no mandato Bolsonaro, o ajuste contábil decorrente do acordo entre União e o Município de São Paulo em torno da propriedade do Campo de Marte.

Adotamos igualmente a hipótese de que parte do aumento do gasto em Dilma 1 não tinha finalidade eleitoral, e sim respondia a maior preferência dos governos do PT por gastos. Também calculamos a variação do gasto como proporção do PIB potencial e não do PIB observado. Com todos esses ajustes, permaneceu a conclusão de que os gastos em busca de reeleição foram maiores em Dilma 1 que em Bolsonaro.

Após a publicação do artigo no Blog do IBRE, fomos alertados para o fato de não termos considerado o programa de Bolsonaro que ofereceu crédito a empresas em pessoas negativadas (SIM-Digital), que teve alta inadimplência, além do crédito consignado a famílias do Cadastro Único.

O custo fiscal de ambos estaria na casa de R$ 3 bilhões. Isso também não mudaria a conclusão qualitativa, tendo em vista que teríamos que considerar, também, o Programa Minha Casa Melhor, de Dilma 1, que teve desembolsos, inadimplência e custo fiscal apenas um pouco menores.

Também analisamos os mecanismos de intervenção no mercado cambial no período pré-eleitoral. A literatura mostra que é prática comum de governos populistas a sobrevalorização do câmbio em momentos pré-eleitorais, para ajudar a segurar a inflação e aumentar a sensação de bem-estar.

As ações do Banco Central relacionadas ao câmbio não são decididas e divulgadas por um comitê de forma colegiada, como acontece nas decisões sobre política monetária. Por essa razão, as justificativas para uma possível intervenção do BC são menos transparentes. O controle social sobre a política cambial é menor.

Foi significativa a intervenção no mercado de swap cambial ao final do governo Dilma, durante o período pré-eleitoral, algo que não se verificou durante a gestão de Bolsonaro.

Entre 2013 e o terceiro trimestre de 2014, sem a independência do Banco Central, os swaps cambiais aumentaram de 0% para 4% do PIB, ajudando a mitigar a desvalorização do real, que passou de R$ 2,0 para R$ 2,3 por dólar.

O elevado déficit de transações correntes indicava que não havia necessidade de políticas para conter a desvalorização da moeda, e os fundamentos sugeriam um ajuste maior do real em relação ao dólar.

Em contraste, entre 2021 e 2022, o estoque de swaps cambiais permaneceu praticamente inalterado, refletindo a ausência de razões para a intervenção do BC no câmbio nesse período.

Fica a dúvida se essa distinção significativa no comportamento do Banco Central entre os dois períodos pode ser atribuída à aprovação da independência da instituição no governo Bolsonaro, após mais de vinte anos de debates a respeito.

Por fim, avaliamos a herança da política fiscal do governo Bolsonaro – em comparação com as administrações anteriores – levando em conta o resultado fiscal estrutural calculado pela Instituição Fiscal Independente (IFI) e os “gastos encobertos”.

O governo Dilma 1 deixou um déficit primário estrutural de 1,8% do PIB e um gasto encoberto de 1,7% do PIB , somando um déficit de 3,5% do PIB.

Ao final do Governo Temer, o déficit fiscal estrutural era de 1,8% do PIB, mitigados por gastos encobertos que representavam -0,6% do PIB (houve muita redução de restos a pagar no período), o que melhorava a situação estrutural em relação à herança deixada por Dilma 1, reduzindo o desafio fiscal de 3,5% do PIB para 1,2% do PIB.

Por sua vez, ao finalizar seu mandato, Bolsonaro entregou o governo com um superávit estrutural de 0,2% do PIB, mas com gastos encobertos de 0,9% do PIB, resultando em um desafio fiscal de 0,7% do PIB, menor que os 1,2% deixados por Temer.

Chega o Lula 3

A administração Lula 3 quebrou esse padrão de melhoria contínua das contas estruturais ao optar por um aumento significativo nos gastos públicos, elevando-os permanentemente de 18,1% do PIB herdados de Bolsonaro para 19% do PIB, conforme as estimativas de mercado divulgadas no Prisma Fiscal.

Além disso, há indícios de que esse nível de despesas possa chegar a 20% do PIB. Isso se deve tanto aos discursos emanados do Planalto quanto às diversas iniciativas de política parafiscal, que lembram as mesmas ações implementadas por Dilma.

Assim, nosso texto conclui que a recente deterioração fiscal, que resultou em uma piora acentuada no preço dos ativos domésticos, é atribuída a decisões relacionadas à expansão da despesa primária em Lula 3, muitas sem a transparência adequada.

O Ministro Fernando Haddad afirma que o problema da despesa elevada é herança do Governo Bolsonaro. Em suas entrevistas, Haddad costuma mencionar três principais exemplos: i) a ampliação do Bolsa Família, que aumentou de 0,5% do PIB (antes da pandemia) para o atual 1,5% do PIB; ii) o aumento das despesas com a complementação federal do FUNDEB, que devem passar de R$ 15 bilhões (0,15% do PIB) em 2020 para cerca de R$ 65 bilhões por ano (0,5% do PIB) em 2026; iii) a expansão das emendas obrigatórias, que subiram de 0,04% do PIB em 2015 para 0,32% do PIB em 2023.

O fato é que essas despesas já existiam durante o governo Bolsonaro. Ou seja, o gasto primário de 18,1% do PIB legados por Bolsonaro incluía estas despesas.

O motivo para tais despesas caberem no orçamento é que, na mesma época, o salário-mínimo era corrigido pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), enquanto as despesas com saúde e educação eram, em grande parte, ajustadas pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

Dessa forma, o governo Bolsonaro fez uma escolha que gerou espaço fiscal de cerca de 1 ponto percentual do PIB em quatro anos, acomodando a elevação de despesa mencionada por Haddad.

Pode ter sido uma escolha ruim. Talvez tenha sido ela que gerou a derrota eleitoral de Bolsonaro. Mas houve uma escolha.

O governo Lula 3 adotou reajustes reais para o salário-mínimo e os gastos em saúde e educação, baseando-se na variação do PIB e da receita corrente, em vez do crescimento real zero anterior. 

Lula não fez escolhas.

Busca-se amenizar o aumento das despesas com maiores receitas. De acordo com o Prisma Fiscal, a receita líquida de transferências projetada pelo mercado já atinge 18,4% do PIB para 2025 e 2026, representando 1% do PIB a mais em comparação com a estimativa de dois anos atrás.

Contudo, existe certo ceticismo quanto a isso, dado que estamos no auge do ciclo econômico, fase em que, normalmente, a arrecadação tende a ser superior à média do ciclo.

Logo, estamos numa situação em que o mercado estima uma despesa em torno de 19% do PIB e uma receita de 18,4% do PIB, ou seja, um déficit primário estrutural permanente, com uma perspectiva de dívida pública crescente ao longo do tempo, chegando a aproximadamente 84% do PIB em 2026.

Por conseguinte, enquanto o Presidente Lula e sua equipe não adotarem medidas estruturais para conter a expansão das despesas, como uma reforma das despesas obrigatórias que represente entre 0,5% e 0,7% do PIB – desvinculando benefícios previdenciários e assistenciais do salário-mínimo e eliminando a indexação de gastos em saúde e educação à receita tributária – a deterioração no preço dos ativos persistirá.

Essas ações representam o mínimo necessário, alinhando-se ao que propõe a PEC apresentada pelos deputados Pedro Paulo (PSD-RJ), Kim Kataguiri (União-SP) e Júlio Lopes (PP-RJ).

O governo deixou escapar a oportunidade de tomar essa decisão na semana passada. Em vez de propor uma reforma significativa nas despesas obrigatórias, apresentou uma agenda acertada de aumento de impostos para as camadas mais altas da sociedade.

No entanto, essa medida não foi direcionada para corrigir nosso desequilíbrio fiscal ou aliviar a pesada carga tributária sobre o consumo, que recai desproporcionalmente sobre os mais pobres.

Em vez disso, a receita foi destinada a financiar uma renúncia fiscal no Imposto de Renda para a classe média, com isenção de até R$ 5.000, configurando uma clara ação de populismo político.

De acordo com o IBGE, as famílias de classe média no Brasil possuem renda domiciliar per capita que varia entre R$ 1.926 e R$ 8.303 mensais. Assim, a isenção fiscal sugerida no Imposto de Renda beneficiaria quase toda a classe média brasileira, o que vai de encontro à experiência internacional e ao princípio da reforma tributária, que busca aumentar a carga tributária sobre a renda e diminuí-la sobre o consumo.

Estatisticamente, e considerando práticas globais, seria mais coerente que o governo reduzisse o limite de isenção do IR em vez de ampliá-lo, ajustando-o de forma a garantir maior progressividade tributária e equilíbrio fiscal.

Diante do cenário apresentado, torna-se evidente o motivo da péssima recepção do pacote fiscal pelo mercado. O pacote não apenas se mostrou insuficiente para eliminar o déficit primário como também incluiu uma proposta de reforma no IR marcada por apelo populista.

Com o agravamento do ambiente econômico, o papel do Congresso Nacional torna-se crucial. A aprovação da PEC não apenas permitiria zerar o déficit primário, mas também asseguraria a estabilização da dívida pública nos próximos anos.

Isso afastaria o País da necessidade de discutir um ajuste fiscal ainda mais rigoroso em 2027, início do próximo mandato presidencial, em condições econômicas potencialmente adversas e diante do risco de retorno do debate sobre dominância fiscal.

Será que o Congresso tem a coragem política necessária para aprovar esta PEC, contribuindo para o fortalecimento do câmbio e a queda dos juros?

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