“Os filhos de Anand”. A geração que fez da Índia uma potência do xadrez

O jantar de fim de ano de muitos lares indianos promete ser desconfortável para jovens que ainda não sabem o que fazer da vida – e a culpa é de Dommaraju Gukesh. 

Aos 18 anos, ele acaba de se tornar o mais jovem campeão mundial de xadrez da história – e um herói nacional.

Sua vitória sobre o chinês Ding Liren em Singapura é grandiosa porque coloca um indiano pela segunda vez no topo do pódio da modalidade. 

E porque mostra o sucesso da Índia – que 40 anos atrás não tinha sequer um enxadrista de elite – em produzir uma geração que elevou o país ao status de maior potência mundial do esporte. 

É até curioso falar sobre ascensão do xadrez indiano, já que acredita-se que uma primeira versão do jogo surgiu justamente onde hoje é a Índia, durante o século VI. 

Não obstante, apesar da popularidade do jogo a Índia não exportou nenhum grande talento até o fim dos anos 80, quando a então União Soviética (hoje Rússia) dominava o circuito competitivo. 

Vishy Anand, uma espécie de Pelé do xadrez indiano, mudou o rumo da história. 

Anand não tem uma grande narrativa de superação, mas soube capitalizar de forma brilhante o talento descoberto em casa aos seis anos. 

Aos 12 já competia; aos 16 foi campeão nacional; aos 18 se tornou o primeiro grande mestre indiano (GM, o título mais alto que um enxadrista pode alcançar); e, em 2000, aos 31, foi campeão mundial pela primeira vez.

Ainda venceu o título mundial outras quatro vezes antes de ser derrotado pelo norueguês Magnus Carlsen em 2013, consolidando seu legado e inspirando uma revolução na Índia.

“As conquistas dele foram motivando cada vez mais jovens a se dedicarem ao xadrez,” R. B. Ramesh, um grande mestre e técnico indiano, disse ao Brazil Journal.

De 1988, quando Anand se tornou GM, até 2000, a Índia havia formado outros quatro grandes mestres. Hoje são 85, com uma concentração relevante no estado de Tamil Nadu, onde ele cresceu.

Com o ‘efeito Anand’, o xadrez passou a ser cada vez mais utilizado como ferramenta de aprendizagem nas escolas; houve a criação de torneios nacionais infantis (até sub-7); e, a certa altura, havia até vagas de trabalho destinadas a pessoas com o título de grande mestre. 

A maioria dos GMs locais, no entanto, passaram a se dedicar ao ensino do jogo, seja em academias particulares, online ou auxiliando outros jogadores profissionais.

Como resultado, enxadristas promissores começaram a ser descobertos mais cedo e a receber patrocínios públicos e privados para conseguirem competir.

“Tivemos um intervalo entre o Anand e a geração atual, mas já me impressionava nos últimos anos, em competições internacionais, a quantidade de bons jogadores que vinham da Índia, com idades diferentes, patrocínios privados,” me disse o grande mestre brasileiro Krikor Mekhitarian.

Ou seja, jogadores indianos, que tinham um trabalho de base forte em casa, ganhavam agora rodagem internacional – e com o tempo já nem precisavam sair de casa para ganhar mais repertório.

A última peça do quebra-cabeça que liga Anand à geração de Gukesh é justamente a tecnologia. 

É verdade que Garry Kasparov, o lendário enxadrista russo, travou batalhas com o supercomputador Deep Blue da IBM ainda nos anos 90. 

Mas de lá para cá, houve um processo massivo de evolução e democratização na área, desde o amplo acesso à internet e a smartphones até o surgimento das plataformas de xadrez online e a massificação das ferramentas de inteligência artificial.

“Os enxadristas de hoje começam muito jovens e têm a tecnologia como base,” disse Ramesh. “Mesmo que não haja bons técnicos na sua região, é possível aprender muito online.”

Segundo dados do site de xadrez online chess.com cedidos ao Brazil Journal, cerca de metade dos jogadores juniores promissores que competem na plataforma (sub-20) são indianos.

O país tem ainda a segunda maior base de jogadores do site, com 18,7 milhões de usuários registrados. E contribui com 25% da audiência global da modalidade no YouTube.

Tudo isso culminou na chegada da “era dos filhos de Anand”, como escreveu Kasparov no X após a vitória de Gukesh.

Filhos, no plural, porque além do campeão mundial, há R. Praggnanandhaa, Arjun Erigaisi, Divya Deshmukh, R. Vaishali… 

Um grupo de prodígios nascidos depois do ano 2000 que vem acumulando ótimos resultados no circuito mundial e formou a base da seleção indiana que venceu os torneios masculino e feminino das Olimpíadas de Xadrez de 2024.

É que, no caso deles, a pouca idade não é sinônimo de inexperiência. Fotos espalhadas pela internet mostram, nessa linha, os atletas ainda crianças jogando torneios e tendo aulas com GMs renomados ao redor do globo nos últimos anos. 

Gukesh, por exemplo, é filho de médicos, e seu pai escolheu abandonar a profissão para acompanhá-lo desde cedo. Começou a jogar aos 7, tornou-se GM aos 12, e alcançou o top 10 do ranking mundial aos 17. Hoje, Anand faz parte de sua equipe técnica.

“Eles foram a primeira geração que trabalhou com treinadores grandes mestres desde cedo, o que gerou um efeito de encantamento. Isso os inspirou e os fez aprender rapidamente,” disse Ramesh.

Agora o xadrez indiano tem dois desafios.

O primeiro, longe dos tabuleiros, é conseguir continuar “encantando” jogadores jovens, o que passa muito pela democratização dos recursos que hoje são canalizados para a “geração de ouro”.

E, no circuito profissional, ainda falta desbancar o ‘chefão’. 

Apesar de ter decidido não disputar mais o campeonato mundial, Magnus Carlsen segue sendo o melhor jogador do mundo e o líder do ranking da Federação Internacional de Xadrez (Fide). 

“É o desafio mais duro que existe no xadrez,” disse Gukesh, sobre uma possível disputa entre os dois no mundial do ano que vem. “Mas eu adoraria enfrentá-lo.”

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