Em Imortalidades, a esperança e as ilusões de uma vida perpétua

“Durante alguns minutos, às vezes, sei como é ser um cadáver,” a escritora australiana Elizabeth Costello disse certa vez. “Esse conhecimento me repele. Me enche de terror.”

Aos 68 anos, o economista Eduardo Giannetti prefere outra versão do “pânico da morte” (expressão sua). Em vez de se projetar no cadáver futuro, ele recorda os medos noturnos da infância: “Deitado sozinho na cama, o meu terror soberano era a absoluta escuridão reinante no quarto de dormir”. (…) Eu podia ficar cego ou morrer de repente e não ter como saber.”

Personagem fictício criado pelo escritor sul-africano J.M. Coetzee (Nobel de Literatura de 2003), Elizabeth Costello fala de seu cadáver imaginário em A Vida dos Animais, livro de 1999.

Acadêmico que lecionou em universidades como USP e Cambridge, autor de O Valor do Amanhã e de outras obras que transitam entre economia, filosofia e história das ideias, Eduardo Giannetti evoca as trevas de seu quarto de criança no recém-lançado Imortalidades (Companhia das Letras, 432 páginas, compre aqui).

O novo livro examina o anseio humano de perpetuar a vida. O medo da morte que nos assalta em quartos escuros – literais ou psicológicos – figura em várias páginas, mas a tônica não é ditada por fantasias mórbidas como a de Costello/Coetzee. O tema central, informa o prefácio, “não é a morte, mas a afirmação da vida”.

O texto se divide em 203 capítulos numerados – ou como prefere o autor, “microensaios”, distribuídos em seis partes: uma abertura, um epílogo e, entre eles, seções devotadas às quatro estratégias que, segundo Giannetti, vêm sendo adotadas pela humanidade no afã de fugir do inevitável.

Em nosso tempo de revoluções científicas e tecnológicas, está em alta a ideia de “prolongar a vida”, o primeiro dos quatro caminhos para a imortalidade. No cardápio das possibilidades futuras, a mais radical é o mind uploading – a ideia de exportar a mente humana para o ciberespaço. Com boa razão, o ensaísta questiona se uma existência digital ainda pode ser considerada vida.

Mais factível é a pesquisa médica para deter a senescência programada que carregamos em nossas células. Com base na literatura científica, Giannetti esclarece que a medicina futura não oferecerá a imortalidade.

Poderá talvez garantir que nosso corpo não seja mais humilhado por articulações doloridas, rugas e falhas de memória. Mas sempre estaremos sujeitos a acidentes de carro, meteoros, balas perdidas.

Cauteloso, Giannetti pondera as implicações éticas, sociais e existenciais de uma juventude virtualmente eterna. Ele mesmo aceitaria esse prolongamento radical da vida? Entre prós e contras, ele hesita na resposta. Por fim, conclui que é melhor não: o “mistério da morte” é parte essencial da graça da vida.

Em diferentes versões, as “esperanças supraterrenas” de uma vida após a morte – o segundo modo de contorná-la – são oferecidas por quase todas as religiões. O não crente, claro, duvida dessas promessas que não podem ser verificadas. Mas, argumenta Giannetti, elas ainda respondem “às mais caras e inquietantes aspirações humanas”.

Neste passo, Giannetti critica o que chama de “cientismo” – uma concepção rígida da ciência como único caminho para o conhecimento –, que admite só a realidade física e dá como fato incontestável que a morte do corpo é o fim absoluto.

As “expectativas terrenas”, a terceira estratégia para buscar a imortalidade, são as primas seculares das “esperanças supraterrenas”. Trata-se da tentativa de deixar um legado material ou simbólico que perpetue seu criador.

Nesta seção, avultam artistas como o escultor grego Fídias, o romancista francês Gustave Flaubert e o poeta português Fernando Pessoa, todos sequiosos de uma obra que conservaria seus nomes pelos séculos – o que, observa Giannotti, ainda é uma forma de autoengano.

O quarto meio de buscar a imortalidade ganha o nome de “presente absoluto”: um esforço não para esticar a vida no tempo, mas para intensificá-la em um momento singular. O êxtase místico de Santa Teresa e as experiências alucinógenas do escritor inglês Aldous Huxley estão entre os casos examinados.

Giannetti contribui com seu momento pessoal de êxtase: a descoberta, ainda adolescente, da música de Bach. Nos 25 minutos da Partita II para violino, diz ao autor, cabe a eternidade.

Curiosamente, Coetzee, o criador de Elizabeth Costello, relatou uma experiência semelhante em um ensaio dos anos 90: descobrir Bach por acaso na adolescência foi “um momento de revelação”.

Costello admite que a visão de si mesma como cadáver é uma contradição: para perceber-se como um corpo inanimado, ela teria de estar viva e morta ao mesmo tempo. Giannetti vai mais longe: se a morte é o nada absoluto, será impossível se imaginar como um morto.

Em algumas passagens de Imortalidades, o autor deixa discretas pistas de sua inconformidade com a ideia de que a morte seja mesmo o retorno ao vazio total em que estávamos imersos antes do nascimento. No epílogo, essa revolta contra o nada absoluto ganha vazão plena.

Giannetti desabafa: se for assim, que seja! Mas que isso não seja considerado justo. Tem de ser visto como um destino “absurdamente imerecido”.

Mas, o filósofo se pergunta, imerecido aos olhos de quem?

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